segunda-feira, 14 de março de 2016

Quando o diabo lhe sorri


Texto por Dudu Guedes
De vez em quando, a vida nos prega algumas pecas, sem que possamos prever ou mesmo compreender o sentido. Daqueles momentos simples, como pequenos fragmentos do cotidiano ou simples recortes do dia que de repente se tornam cheios de significado e simbologia. Carregados de mensagem forte que atravessam o coracao e aterrisam na alma num voo direto sem conexao. Pois eh. Hoje tive um destes momentos que me fizeram despir do preconceito e rever alguns valores.

Ao caminhar pelo horto no rio de janeiro, nao raro encontro uma mulher, personagem tipica da regiao. Nao sei ao certo se é uma moradora de rua nem sua idade, mas o fato é que ela sempre veste roupas velhas, carrega algumas sacolas cheias de comida, alem de ter um aspecto de  quem nao é adepta dos banhos diários. É comum vê-la andando pelo bairro, ou muitas vezes mexendo em jardins e flores do espaco público, como se estivesse cuidando informalmente daquilo ali. Entretanto, o olhar dela sempre pareceu muito pesado, como se escondesse marcas de uma vida dificil, dura e de muito sofrimento. Confesso que nao sentia uma boa energia e sempre procurava me esquivar de um encontro com ela.

Hoje foi diferente. Sem que eu pudesse evitar, la estava ela na minha frente e na mesma calçada, a poucos metros de distancia e me fuzilando com seu olhar fechado. Como um cachorro que rangia os dentes, sua expressao parecia uma mistura de raiva, revolta, indignacao e condenacao. Ela parecia anunciar uma setenca ruim ou prever uma catastrofe, como  se estivesse te condenando a viver para sempre em uma prisao particular. Eu nao tinha escolha, e teria mesmo que passar por ela. 

No comeco, abaixei novamento a cabeca, como se eu pudesser evitar. Mas vi que seria em vão. Pensei em atravessar para o outro lado da rua, mas alguns carros bloquearam acidentalmente minha estratégia de fuga. Impossível desviar, pensei, e em frações de segundos ela finalmente surgiu na minha frente. Como no filme Encontro Marcado, pensei que ela fosse minha versão feminina do Brad Pit. Vai anunciar minha morte, imaginei. Se bem q eu merecia coisa melhor.

Passos firmes, sigo em frente, como se estivesse cruzando um extenso campo de batalha e, para minha surpresa, ela me sorri. Cumprimento com um olhar meio sem graça e sigo adiante envergonhado de mim mesmo. Sinto um constrangimento interno que logo aciona o alarme da auto-condenacao. Incrível como vivemos a vida com padrões estabelecidos e verdades construídas a partir de falsos julgamentos. 

De vez em quando, eh bom relativizar. Trocar as lentes e ver o mundo a partir de outra perspectiva. Descobrir que a verdade eh subjetiva, a partir do tempo, espaço e observador. A idade envelhece o corpo mas rejuvenesce a alma daqueles que se permitem reconfigurar o HD. Melhor mesmo fazer uma limpeza e esvaziar os arquivos velhos. Antes que o disco lotado também danifique o sistema operacional.  

Nenhum comentário:

Postar um comentário