Texto por Dudu Guedes
Escrito em 2016
O jardineiro gentilmente podava as flores no jardim. Com uma
tesoura na mão, ele ia aparando as plantas maiores alinhadas com as menores de
maneira a delinear uma forma geométrica mais perfeita. Ele parecia um
cabeleireiro da natureza dedicado a caprichar na sua obra.
Me aproximo e pergunto: "O que você está fazendo?"
"Estou buscando um maior equilíbrio e harmonia",
responde ele.
"Está fazendo algum desenho?", retruco.
"Preciso alinhar as plantas para que elas possam receber a
luz do sol e só assim crescerão saudáveis", devolve ele.
"Como assim?", insisto.
"Para um jardim florescer, as plantas precisam crescer
iguais. Se uma sobressai mais do que as outras, ela fará sombra na sua vizinha
e isso limitará o seu desenvolvimento", explica ele.
Essa pequena paródia traz de forma subliminar a teoria da
escassez e a cultura da abundância. Uma reflexão necessária aos tempos atuais
aonde vivemos uma crise política e econômica sem precedentes, mas
principalmente uma crise de valores éticos e morais, essencialmente egoísta e
sem foco no coletivo.
Explicando o que é a cultura da abundância: o mundo nos fornece
tudo aquilo que realmente precisamos em abundância e de maneira igual. A
escassez é uma criação humana.
O sol ilumina e aquece a todos por igual sem nenhuma distinção.
A agua das chuvas irriga o planeta e sacia a sede de todos, sem escolher
religião, escolaridade, cor de pele ou sexo.
Quando colhemos frutos em nossa horta, se regarmos e cuidarmos,
ela jamais pára de crescer e fornecerá assim novos alimentos.
Algumas teorias e estudos (publicados em revistas cientificas
como a Nature) indicam ainda que existe uma espécie de consciência vegetal,
onde as arvores conseguem se comunicar entre si através dos solos e identificar
possíveis enfermidades entre as plantas doentes de qualquer lugar, criando uma
rede de comunicação e promovendo a troca de nutrientes entre si para garantir
um equilíbrio vegetal no planeta.
No reino animal, o ecossistema não funciona se houver escassez.
A extinção de uma única espécie provoca estrago com efeito cascata em toda a
cadeia alimentar. A matança de tubarões prolifera a espécie das sardinhas que
por sua vez gera o desequilíbrio alimentar.
É o exemplo da interdependência e cooperação mútua, onde mesmo o
mais forte não sobrevive sem a existência do mais fraco.
Se você cortar a pele acidentalmente enquanto faz a barba, o
organismo atua para regenerar a pele através da multiplicação das suas células.
O sexo garante a reprodução e perpetuação das espécies.
A natureza ensina as leis universais. Basta observarmos para
aprender como temos tudo em abundância de maneira igual e equilibrada,
garantindo a continuidade e consistência da vida.
Entretanto, o homem e os princípios da economia do acúmulo
desvirtuam o propósito natural da abundância. É a teoria da escassez.
O homem é o único bicho que mata outros bichos por prazer
(hobby) ou em quantidades maiores do que sua necessidade de
sobrevivência.
Não estou levantando a bandeira do socialismo e tampouco defendendo
convicções políticas de esquerda ou direita. Sou a favor da competição e das
leis de mercado. O problema não está aí.
A competição sempre existiu na natureza na busca pelos alimentos
e, segundo as leis de Darwin da evolução das espécies, sobrevivem os mais
fortes.
O problema está na competição desenfreada, quando uma empresa
busca concentrar o mercado e eliminar a concorrência de forma desleal ou
vantajosa.
O problema está na desvalorização da forca de trabalho quando
uma empresa, ao invés de reconhecer os seus funcionários como o ativo mais
importante da sua produção, buscam sub-remunerar a sua mão de obra para
maximizar os dividendos entre os acionistas em prol do desequilíbrio
interno.
O problema está em esmagar os acordos vigentes, quando uma
empresa renegocia contratos com parceiros e fornecedores de forma
unilateral.
Isso tudo gera concentração além do necessário para poucos e a
escassez para a maioria. Concentração gera escassez. Abundância individual gera
escassez coletiva.
Alguns órgãos como o Cade (Conselho Administrativo de Defesa
Econômica) ou Sindicatos deveriam existir para garantir o equilíbrio das
relações no mercado, mas por vezes são subvertidos a ganância de alguns que
buscam promover a teoria da escassez em detrimento da cultura da abundância que
existe na natureza.
Reclamamos da violência, da miséria e da poluição, mas não
percebemos que somos parte originadora do problema, quando buscamos uma
concentração alem do necessário e assim geramos escassez.
De que adianta o empresário que tem casa no exterior e jatinho
particular, se existem grades e cercas elétricas ao redor da sua casa?
De que adianta o politico com cifras milionárias em sua conta
corrente, se seu carro necessita de blindagem?
Ora, não defendo a idéia de que rico é vilão opressor e
aristocrata, enquanto pobre é coitadinho. Pelo contrário, precisamos reconhecer
os empresários que geram emprego, movimentam a economia e aumentam a
arrecadação do estado. Empreender é ousar e exercitar o verdadeiro espírito do
desbravador.
Entretanto é preciso diferenciar dinheiro bom de dinheiro ruim.
Mil reais nem sempre equivalem ao dobro de quinhentos reais e algumas vezes
também não remuneram o esforço empregado.
Agora, vamos trazer isto para a micro-realidade do nosso
universo particular, além da deplorável manchete que assistimos todos os dias
nos jornais. O que fazemos em nosso dia a dia ajuda a promover a cultura da
abundância ou a fomentar a teoria da escassez?
Exemplos:
Você é muito bem remunerado pela sua empresa, o que permite
colocar o seu filho na melhor escola do bairro e viajar 2 vezes por ano com
toda a família para destinos internacionais. Ao mesmo tempo, você paga um
salário mínimo para a senhora que cuida da sua família ha mais de 15 anos.
Você comprou um sofá há 5 anos atrás e decidiu vender agora.
Você comprou o sofá por R$ 2.000, mas quer vender por R$ 1.700 mesmo sabendo
que ele vale menos.
Você tem um apartamento próprio no leblon e decide alugar. Ele
vale em torno de R$ 2.000 mas você quer maximizar o retorno e consegue um
cliente para pagar R$ 4.500, afinal trata-se de uma multinacional quem bancará
os custos de aluguel do funcionário. Entretanto, você também trabalha na região
e fica incomodado com os valores abusivos de refeição cobrados pelos
restaurantes do bairro. Ora, o problema é a política e economia ou você também
é parte dele?
No colégio, o pai ensinava ao filho que o mundo é competitivo e
por isso, ele precisaria ser melhor do que os seus amigos. Isso gerava uma
sensação de frustração pois na cabeça da seu filho, ele acreditava que
trabalhar de forma colaborativa com seus colegas poderia leva-lo mais longe e
criar um mundo melhor do que trabalhar de forma competitiva.
O homem decidiu se divorciar da mulher. Ele contratou o melhor
advogado pois queria deixa-la com o mínimo possível ainda que ela tenha o
apoiado durante toda a vida e esteja cuidando e morando com o seu filho.
A mulher se divorciou do homem. Ele fez de tudo para que pudesse
ser uma separação tranquila para os filhos e deixou o apartamento e uma pensão
que cobriria todos os gastos dos filhos e um pouco mais, sem que ela precisasse
trabalhar ou dividir as despesas. Mas ela achava que ele ganhava muito bem e
queria um percentual maior do seu salário.
Ontem, peguei um Ubber que comentou que alugava o carro de outra
pessoa por R$ 500 semanal e que isso estava lhe tirando o sono. Ele decidiu
alugar o carro de uma locadora e reduziu o gasto para R$ 1.200. Finalmente, com
a economia, conseguiu comprar um carro próprio. Será que sujeito que alugava o
próprio carro por R$ 500 semanal acreditava que este era o valor adequado para
o serviço?
Afinal, qual o conceito de "preço justo"?
Preço justo é aquele que remunera os custos envolvidos, de forma
a gerar margem e recuperar o investimento realizado mas preservando o
equilíbrio em toda a cadeia produtiva e sociedade. Afinal, a sua produção
também depende de todo o sistema. Os livros de marketing e administração
ensinavam que uma clássica estratégia de precificação é ajustar o preço de
acordo com a lei da oferta e procura. Cerveja em praia lotada no verão é mais
caro que no inverno. Faz sentido. Mas não deveria ter um limite? Claro, uma garrafa
de agua mineral no deserto certamente também tem um custo maior de logística e
distribuição, além de uma procura maior do que a oferta. Entretanto qual a
margem esperada com a atividade?
Recentemente, em visita a Abu Dhabi, me chamou a atenção o preço
de uma garrafa de agua mineral em torno de 20 reais versus um vinho que custava
R$ 25. Logo, parecia fazer sentido. Entretanto, um copo de suco de abacaxi em
pleno leblon que custa R$ 15 parece exagerado e possivelmente efeito cascata da
teoria da escassez (imposto alto que gera aluguel caro que gera aumento de
preço que gera desemprego para cortar custos e assim vai).
Claro, muitas vezes a origem de muitos problemas está nas
políticas econômicas. Alta carga tributária para bancar a corrupção que gera
estratégias de sobrevivência financeira. Mas o quanto suas decisões estão
associadas a sobrevivência financeira de fato ou simplesmente concentração e
escassez? Vale fazermos a reflexão.
Ambição não é ruim, mas deveria ser compartilhada. Existe uma diferença
entre acumular riqueza e concentrar riqueza.
Competição saudável é aquela que promove o desenvolvimento
social e equilíbrio em toda a cadeia, incluindo clientes, fornecedores,
concorrentes e colaboradores. Competição ruim é chute na canela, arbitro
parcial, torcida que não respeita o jogo e impede o adversário de sair do
estádio.
Competição saudável valoriza o coletivo e percebe o efeito de
interdependência na cadeia. Competição ruim foca em satisfazer os interesses
particulares em detrimento do outro.
Na realidade, o paradoxo é que concentrar riqueza de forma
desenfreada ou egoísta fomenta a cultura da escassez e isso de alguma forma vai
chegar até você, seja através da violência, inflação ou desemprego.
Sejamos mais evoluídos que o bicho homem e capazes de crescermos com
sabedoria em prol do coletivo e do olhar ao outro. Que a natureza possa trazer
a abundância e nós sejamos capazes de mante-la. Afinal, como diz na música
"é impossível ser feliz sozinho".