segunda-feira, 4 de julho de 2011

Risca de Giz



Texto by Dudu Guedes

A executiva saiu de casa apressada. Tinha uma reuniao decisiva com o board da empresa. Nao poderia atrasar num dia tao importante. Ordenou a baba que levasse seu filho a creche. Colocou um blazer risca-de-giz que so usava em situacoes extraordinarias. Aquela era sua chance de sentenciar a promocao que almejava. Entrou num taxi e rumou ate a boulevard mais proxima. Ignorou a fila e entrou no elevador cega pela seu compromisso. Seu sonho era trabalhar no ultimo andar do predio. Quanto mais alto o andar, mais importante o cargo, pensou. Apertou o vigesimo, orgulhosa de si mesmo. Olhou pelo espelho para conferir os ultimos ajustes no visual. Queria impressionar, mas tomou um susto. Na pressa de sair de casa, esqueceu de pentear o cabelo. Esqueceu de escovar os dentes e esqueceu de tomar banho. Os olhos ainda remelentos revelaram a sua identidade e despiram a fantasia que tentava reproduzir. As pessoas ao redor dela nao abriram a boca, mas era nitido o riso no olhar. O desespero tomou conta de Helena. Corta. Cena 2.

Helena acorda assustada. Confere o relogio. 6:30 da manha, 1 hora antes do despertador tocar. Engracado este nome, se fosse bom nao se chamaria despertador e sim despertalivio ... Helena nao consegue mais dormir. Nao quer que o pesadelo se torne realidade. Prefere ficar acordada e repassar a apresentacao. Mal sabe que o pesadelo ja tinha acontecido. A tal "maldicao da prece atendida", temos que tomar cuidado com nossos pedidos. Desejava um objetivo tao cegamente que esquecera de enxergar as renuncias que cometera. Prepara uma xicara de cafe, e le superficialmente a primeira pagina do New York Times. Apesar de morar no Brasil, ela queria impressionar. Passa pela secao de economia e tenta memorizar o fechamento da bolsa de valores do dia anterior. Maria traz o cafe quente. Derruba no terno risca de giz de Dona Helena. Ela grita e acorda seu filho. Pedro, de apenas 3 anos, aparece na porta da sala chorando assustado. Histerica, Helena nao para de reclamar. Corta. Cena 3.

Dona Helena abraca Pedro. Ela nao sabe ao certo quando passou a ser a Dona Helena e quando deixou de ser a mae do Pedro. Mas parecia um tempo longinquo. Ja nao lia mais historias em quadrinho para o filho. Sua obsessao pela promocao colocaram-na numa jaula dos seus tortos pensamentos. Troca o terno risca de giz. Corta. Cena 4.

Helena sai de casa. Entra no taxi rumo a boulevard mais proxima. Passa apressada pela fila do elevador e aperta o vigesimo andar, orgulhosa de si mesmo. Confere o visual e toma um susto. Cabelos despenteados, olhos remelentos. Dessa vez esquecera realmente de tomar banho. E ainda estava sem o terno risca de giz. Nao era um sonho. Era um pesadelo em vida real. Decidiu descer e apertou o primeiro andar. O elevador parece percorrer uma torre do Empire States. Finalmente para e abre a porta. O CEO entra, cumprimenta Helena e diz: "bom dia, estamos atrasados". Ela nao tinha mais escolha. Permanece no elevador. Thomas, um ingles metodico, observa fixamente Helena e pergunta: novo corte de cabelo ? Helena congela. O elevador para no vigesimo andar. Os dois saem rumo a sala da reuniao. Corta. Cena 5.

Helena entra na sala de reuniao meio sem graca. Olha em volta e nao acredita. Tudo parece meio fora de lugar. A sala esta meio baguncada. Algumas pessoas de meia, outras de pijama e todos com um visual de recem-acordados. Ela parece nao crer no que ve. Faz um esforco e tenta acordar. Nao consegue. Ate os mais serios passam por ela com o cabelo desajeitado, tipico de uma noite mal-dormida. Vira para o lado e avista Patricia. E descobre, para seu espanto, que a mais barbie da empresa nao tinha cabelo liso como aparentava. Helena solta um riso contido que logo vira uma estrondosa gargalhada. Olhos esbugalhados, camisas amassadas, o dia parecia estar do avesso. Mas ela nao era a unica naquele vexame coletivo, pensou. Ricardo chega para acalmar. Helena, vamos conversar - ele diz. Preciso explicar o que esta acontecendo, emenda ele. Corta, cena 6.

Helena acompanha Ricardo ate outra sala mais reservada. Sentam numa mesa. Ela parece ansiosa para ouvir. Tudo comecou hoje as 07 da manha com a chegada do nosso primeiro colaborador, diz Ricardo. No inicio, todos parecem confusos e assustados. Mas percebemos que trata-se de um surto coletivo. Podemos definir surto como a ocorrencia de cinco ou mais casos numa area geografica definida de uma reproducao de comportamentos comuns ... Parece que isto esta acontecendo hoje em todo o planeta. Recebemos relatos de casos semelhantes em Hong-Kong, Cingapura, Nova York e Portugal. Ricardo da um breve suspiro e diz: calma Helena, vai passar. Corta, cena 7.

Helena, ja mais calma, decide passear pela empresa e desfrutar daquele momento. Por alguns instantes, parece enxergar beleza onde nunca vira outrora. Lembra de seu filho Pedro e resolve ir para casa. Anda devagar pelas ruas e parece descobrir uma nova cidade em caminhos tao habituais. Parece mais integrada e conectada com o universo. Corta, cena 8.

O despertador toca. 10h da manha. Helena acorda assustada. Nao entende direito o que aconteceu. Perderia a tao esperada reuniao. Anda pela casa ainda atonita e encontra Pedro brincando no tapete da sala. Abre as cortinas e ve um bloco de carnaval passando bem embaixo da sua janela. Pessoas com as mais diferentes fantasias. Maria se aproxima, lhe entrega o terno risca de giz e diz: a senhora esta atrasada, dona Helena. Claro, ela responde. Rapidamente veste o terno e decide levar o Pedro. Desce apressada, pega o Pedro no colo e se mistura alegre com sua fantasia no meio da multidao. As pessoas riem. O celular vibra. Era uma mensagem do Ricardo: "vc nao vem ? a reuniao ja comecou". Helena responde: "calma Ricardo, vai passar".

Pausa para a reflexao ...

Um dia me explicaram que o significado das gravatas era esconder os botoes da camisa. Esconder pra que cara-palida ? Fica mais elegante, insistiram. Apesar de nao ser um exemplo de foliao no carnaval (confesso que prefiro evitar os tumultos), reconheco que a data tem um papel importante de renovacao. Deixamos de lados as vestes de adulto para exercitar um novo olhar. Mas por que precisamos esperar 1 ano para durante o carnaval vestir outras fantasias ?

Certa vez, um amigo fez o seu trabalho de conclusao da faculdade baseado em um interessante estudo da loucura. Visitou um manicomio e cedeu algumas maquinas fotograficas para os internados com transtorno mental. Pediu que durante 1 semana eles tirassem fotos de temas especificos como paisagem, pessoas, casas e por ai vai. Fez o mesmo com as pessoas consideradas de plena sanidade. O resultado foi bastante perturbador. As pessoas consideradas normais tinham uma preocupacao coletiva e unanime de enquadramento perfeito. As casas estavam sempre centralizadas. No manicomio, as fotos tinham um recorte de poesia. Nao existiam fotos iguais. A foto as vezes enquadrava um sorriso, as vezes um nariz. Concluiu que loucura esta nos olhos de quem ve. Enxergar a realidade igual eh talvez a maior delas. A historia revela quantos queimaram na fogueira da inquisicao para que fosse possivel aprendermos e evoluirmos. Sabios loucos de outrora.

Deveriamos ter um dia onde todos sairiam as ruas como simplesmente acordaram. Parece loucura, mas quem vive no interior sabe do que estou falando. As pessoas se conhecem mais na sua essencia. A intimidade que revela a verdadeira identidade e expulsa a camuflagem de cameloes sociais que tentamos reproduzir. Nada contra a boa educacao e higiene. Claro que um pouco de vaidade tb nao faz mal a ninguem. O problema sao as fantasias que todos os dias tiramos do cabide sem questionar.

Que possamos valorizar as coisas simples, verdadeiras e intensas da vida. Que possamos abrir as portas do manicomio em que vivemos e enxergar o mundo com os olhos de crianca. Que os loucos de hoje possam ser os genios do amanha.

Ps. Agora sinceramente, olhe a primeira e ultima foto abaixo e me responda: quem esta realmente fantasiado ? Contrariando o artista: "que todo carnaval nao tenha seu fim".



Um comentário:

  1. Não tenho comentários a fazer!
    Talvez algo para complementar...
    Uma vez me disseram que o orgulho é a raiz de todos os maus sentimentos. Qdo nós eliminarmos ele teremos a verdadeira evolução espiritual. Se pararmos p/ analisar, essa é a mais pura verdade. Aqui, vc aborda a vaidade (não apenas no sentido de estética, mas a vaidade como um todo) tão presente no nosso dia a dia. E quem um dia mudará isso? Será aquele que assumir a posição de "louco"/ "diferente"?
    Então, que o doidos ensandecidos cheguem primeiro na evolução espiritual (rs)

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