segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Janela de Oportunidade - Capítulo II




Texto by Dudu Guedes

10 de outubro. Acordei cedo, e como de costume, olhei para o céu. Hábito que comecei na infância de contemplar as nuvens e hoje apenas justifico como uma forte conexão com a natureza ou quem sabe, o divino.

Tem uma frase do Leonardo Da Vinci que diz: “aquele que um dia tiver a experiência de voar, andará para sempre com os olhos voltados para o céu”. Não lembro o texto exato, mas é mais ou menos assim. Poesia verdadeira vinda de um cara que pode-se dizer que de fato sabe o que está falando ... Pode soar estranho e conversa de maluco, mas os pássaros também são assim. Ao primeiro raio do dia, misturam-se no seu ambiente. Felizmente, ainda não nasceu penas nos nossos braços e pernas. Pelo menos, não se tem registro em nenhum dos voadores mais próximos.

O céu do domingo estava mais azul do que no sábado. Pelo telefone, um amigo e piloto confirmou. “Pode vir, parece que é o dia”. Cristo. Esse era o código que usamos num dos vôos mais especiais que se pode fazer no Rio de Janeiro. Especial e raro. Ir voando de São Conrado até o Cristo Redentor, sem motor, aproveitando as correntes de vento em cerca de 9 Km e contemplando a beleza da lagoa, rocinha, jardim botânico, vista chinesa ... Realmente não tem preço.

Como num jogo de adivinhação, o destino final não é garantido, e temos que buscar térmicas pelo caminho, que são oportunidades invisíveis e funcionam como os combustíveis que nos transportam até a altura das nuvens. A visão dos deuses com um combustível natural. Uma condição rara que acontece cerca de 4 a 5 vezes ao ano, na combinação de saída de frente fria e entrada de vento sul. Neste domingo, o vento não era sul, mas sudoeste, o que tornava mais fácil a ida até o Cristo, mas mais difícil o retorno para São Conrado. Talvez tivesse que usar o pouso alternativo do Jóquei Club, pensei.

Só fui realmente sair de casa por volta das 10 horas. Estava sem carro, e na expectativa e ansiedade daquela condição, preferi pegar um taxi. No trajeto até São Conrado percebi que já haviam 2 parapentes sobrevoando a estátua. O piloto e amigo Cleyton também me esperava na praia. O dia começava a sombrear e a janela de vôo para o Cristo estava ficando menor. Explicando: quanto maior a incidência de sol, maiores as chances de térmicas e, consequentemente, da sustentação necessária para ir voando até a estátua. Como parapente não tem motor, a razão de planeio é fundamental para um vôo mais longo.

Nesses dias de Cristo, confesso que perco um pouco a razão (ou talvez bastante para aqueles que já estiveram do meu lado). Existe uma explicação, mas não uma justificativa. A explicação é que se trata de uma janela de oportunidade. Para navegar numa condição tão rara, temos que aproveitar todos os elementos e variáveis do dia ao nosso favor. É como receber um presente divino, mas que só pode ser aberto naquela manhã. Muito parecido com os surfistas que buscam na tempestade a perfeição das ondas gigantes. Eu precisava “surfar” aquele dia, pensei.

Cheguei na praia já com a ansiedade alta. O dia sombreava mais e cada minuto era precioso para eu ganhar aquele presente. Sem me dar conta, adrenalina já bombava meu sangue. Não pelo medo daquele vôo, mas talvez pelo medo daquele não-vôo. Os anjos pareciam sussurrar me convidando a contemplar aquele dia. Apressado, subi junto com o amigo Cleyton que compreendeu meu momento, com a paciência de um monge. Obrigado por tudo, Big Fly.

Equipei apressado e decolei meio sem jeito. Decolagem ruim, fruto da traição da minha mente. O pensamento já estava no Cristo, mas tive a consciência da necessidade de dominar a mente. Era preciso respirar e controlar a ansiedade.

Rapidamente fiquei mais alto que a rampa e tirei para o Crockaine, morro em frente a Rocinha. Junto com outras 2 asas, dividimos a mesma térmica e ficamos altos já com vista da estátua a frente. As nuvens bloqueavam o sol, e as asas pareceram desistir da missão. Janela de oportunidade, pensei. Tinha conseguido a altura necessária e não pretendia desperdiçar aquele momento. Só dependia de mim e normalmente a natureza é mais previsível do que os seres humanos. Lá estava eu voando por cima da Rocinha, rumo a estátua tão esperada. Afundei muito depois da Vista Chinesa e cheguei a pensar em desistir e pousar no Jóquei. Já próximo ao Sumaré, encontrei algumas boas térmicas. Como numa mágica passagem divina, fui ficando mais alto.

Decidi voar mais perto do Cristo e aos poucos a Estátua chegou do meu lado. Durante alguns minutos parecia que aquele voador inusitado passou a ser a atenção daqueles visitantes que estavam nos pés do Cristo. Pouco importava. O que importava é que lá estava ele, majestoso na minha frente. Faziam 4 anos que não voava até o Cristo, e fazer aquele vôo no momento de meu retorno a cidade, era como receber umas boas-vindas mais do que especiais. Providência divina, pensei. E chorei sem que ninguém pudesse notar. Um choro curto, mas intenso, vivo, mistura de alegria e desabafo. Era bom me sentir novamente vivo. Por inteiro.

Era hora de voltar. O caminho de retorno era mais complicado no sudoeste. O vento-contra parecia aumentar e minha velocidade não passava de 15 Km/h. Estava afundando muito e não achei razoável insistir. Decidi pousar no jóquei. Já tinha cumprido minha missão de visitar novamente a estátua. Sobrevoei a lagoa imaginando um pouso no Heliporto. Mas achei que não seria legal enfrentar a turbulência de um possível helicóptero.

Voltei a mirar o jóquei quando alguns pássaros em círculo pareciam um convite para me juntar a eles. Enroscamos juntos na mesma térmica. Fiquei muito alto. Estava na altura do morro Dois Irmãos em cima do Jóquei e decidir pousar em Ipanema. Mas o vento estava muito turbulento ali. As águas da lagoa espelhavam um ar turbulento e algumas nuvens carregadas vindas da zona norte pareciam avançar rapidamente. Voar no vento sudoeste sempre exige atenção e cuidados redobrados. O risco de uma chuva faz o vento acelerar subitamente. Achei mais prudente pousar com segurança no jóquei. Pousei do lado da piscina do clube que freqüentava na infância. Boas recordações. Conversa com alguns curiosos, enquanto dobrava o equipamento. Prosa boa, descompromissada.

Que Deus possa proporcionar mais presentes como este, que eu tenha sempre a sensibilidade de uma criança para enxergar estas oportunidades e que eu tenha sempre a coragem necessária para abri-los. Obrigado !

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